O Brasil perde 19 crianças ou adolescentes por dia para a violência. É como se um dos maiores aviões da Boeing cheio de jovens caísse a cada 21 dias no país, com a grande maioria dos assentos ocupada por meninos negros.
Nesse mesmo intervalo de 24 horas, ao menos outras 123 pessoas dessa faixa etária, de até 19 anos, são estupradas. Nesses casos, as maiores vítimas são meninas na pré-adolescência, tanto negras quanto brancas.
Os números foram calculados por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que destrincharam de maneira inédita os boletins de ocorrência de mortes violentas e estupros infantis e juvenis de 2016 a 2020.
O resultado a que chegaram foi um total de 35 mil assassinatos nos últimos cinco anos e de no mínimo 179 mil estupros nos últimos quatro anos, conforme os dados disponíveis. Como não existe uma base nacional, foi preciso pedir as informações a cada estado, muitos sem dados completos ou desagregados por idade.
Falhas no preenchimento dos registros fazem com que os resultados sejam considerados uma estimativa conservadora pelos pesquisadores, que acreditam que os dados sejam superiores ao número de crimes contabilizado pelos estados.
“O que chama mais atenção é o volume de casos encontrados. Sabemos que estão subestimados e ainda assim identificamos essa quantidade muito alta, o que mostra uma prevalência da violência na vida das nossas crianças e adolescentes”, diz Danilo Moura, oficial de monitoramento e avaliação do Unicef.
Uma das principais conclusões do estudo é que o perfil dos crimes muda de acordo com a idade. Enquanto as crianças são mortas em circunstâncias que apontam para violência doméstica, os adolescentes são afetados principalmente pela violência urbana e armada.
Entre as vítimas de até 9 anos, predominam os óbitos dentro de casa e por autores conhecidos, com porcentagens mais altas de uso de arma branca (é o caso de 23% dos mortos de 5 a 9 anos, por exemplo) e agressão física (10% dos mortos de até 4 anos).
“O número é muito menor de que quando a gente considera de 10 a 14 [anos], ou 15 a 19, mas isso está longe de ser desprezível e decorre da violência doméstica. A gente tende a olhar para a violência doméstica como um fenômeno relacionado ao parceiro íntimo, a essa mulher que sofre violência do seu companheiro, mas temos que lembrar que a violência doméstica também afeta crianças”, diz Samira Bueno, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Já entre os jovens de 10 a 19 anos, é maior a parcela de assassinatos em vias públicas e por desconhecidos. Também são mais comuns os óbitos por armas de fogo e por ações policiais –que chegam a 85% e 10% dos casos, respectivamente, na faixa etária mais velha.
“A grande parcela das mortes é de jovens de 15 a 19 anos, mas as vítimas crianças também têm um volume significativo e preocupante, chegando a um caso a cada dois dias no Brasil. São violações que se agravam até evoluir para a morte”, destaca Sofia Reinach, pesquisadora do Fórum.
O estudo considera como mortes violentas a soma dos homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes em decorrência de intervenção policial.
Quando se analisa a série histórica desses óbitos (nos 18 estados que forneceram dados completos), é possível ver que eles seguem a tendência dos assassinatos totais do país: caem a partir de 2017, mas se estabilizam em 2020 mesmo com a pandemia, acendendo um sinal amarelo.
Uma das hipóteses para esse movimento, já apontada em outros estudos do Fórum, é a de que 2016 e 2017 foram anos de muito conflito entre organizações criminosas, com recorde de homicídios no país. Outra explicação é a adoção de políticas públicas de segurança mais consistentes por alguns estados.
“Quando olhamos os estados que puxam essa queda, principalmente no Sudeste, tem uma relação”, afirma Moura. Ele destaca que o problema tem se concentrado cada vez mais no Nordeste e no Norte do país, onde ficam os seis estados com as piores taxas de mortes de adolescentes, incluindo Ceará, Acre e Pernambuco.
A única faixa etária que registrou um aumento nos assassinatos na comparação de 2016 para 2020 foi a de 0 a 4 anos, o que surpreendeu e preocupou os pesquisadores. As mortes na primeira infância saltaram de 112 para 142 nesse intervalo (27%), na contramão das outras idades.
Os motivos para isso ainda não foram estudados, mas os especialistas citam como possíveis fatores a facilitação do acesso a armas de fogo nos últimos anos, que potencializa o risco de a violência doméstica escalar para morte, e o fato de os estudantes terem ficado sem aulas durante a pandemia.
O convívio social aumenta a chance de outro adulto perceber quando uma criança ou adolescente está passando por agressões ou abusos e intervir. Por isso, uma das recomendações do relatório é intensificar o treinamento de professores, assistentes sociais, profissionais de saúde e policiais para lidar com esse público.
“Não existe uma política nacional específica [para prevenir a violência infantil]. A estrutura desenhada pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] está muito fragilizada, com cortes de orçamento fortes em áreas como conselhos tutelares e assistência social”, critica Cunha.
O Unicef tem trabalhado, por exemplo, para que a lei federal 13.431 –voltada à escuta protegida de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência–, saia do papel e seja conhecida e implementada em mais de 2.000 municípios do país.
Outras recomendações elencadas são informar meninas e meninos sobre seus direitos e riscos, para que saibam pedir ajuda, e priorizar as investigações de crimes contra eles, o que já está previsto em leis sancionadas em capitais como Rio de Janeiro e, recentemente, São Paulo.
Por fim, quanto aos estupros, o estudo confirma conclusões já vistas em outras pesquisas, como a prevalência das vítimas femininas (80%), principalmente de 10 a 14 anos, abusadas em casa e por conhecidos (86%). Entre as vítimas masculinas, os casos se concentram dos 3 aos 9 anos.
A grande subnotificação da violência sexual não permite fazer uma análise histórica. Uma pequena queda observada no ano passado, por exemplo, provavelmente está relacionada à diminuição acentuada das notificações no início do isolamento social.
Os pesquisadores agora olham com atenção um aumento da fatia de crianças mais novas nos estupros do último ano. De 2019 para 2020, meninas e meninos de 5 a 9 anos passaram de 24% para 26% das vítimas. “É importante verificar se essas são tendências que se manterão”, diz o relatório.
“O ano de 2020 foi um período muito difícil para a proteção de crianças menores. Talvez tenha um aumento real, mas associado a uma mudança de contexto da pandemia, em que os fatores de risco para violencia sexual pioraram”, avalia Cunha.
RECOMENDAÇÕES DO ESTUDO
Não justificar nem banalizar a violência contra crianças e adolescentes, e sim denunciar
Capacitar os profissionais que trabalham com esse público
Trabalhar com as polícias, investindo em protocolos e treinamentos para lidar com jovens
Garantir a permanência de crianças e adolescentes na escola
Informar meninas e meninos sobre seus direitos e riscos para que saibam pedir ajuda
Priorizar investigações sobre violências contra crianças e adolescentes
Investir na geração de evidências sobre o problema para poder enfrentá-lo
Fonte BN