É possível agora dizer que Alagoinhas esteve historicamente no centro do desenvolvimento do país em seu nascimento e tem a melhor água do mundo, junto com um manancial na Suíça – o pesquisador disse: “está entre as duas melhores do mundo”. Alagoinhas foi conhecida por muitos anos como terra da laranja, mas aqui vai uma correção histórica, entre tantas outras oferecidas pelo livro recém lançado da professora Iraci Gama, que dispensa apresentações, bem chamado “Memória, Narrativa e Identidade: a cidade ferroviária de Alagoinhas. Um registro que remete aos mais de trezentos anos antes da Vila próspera se tornar município, há 169 anos, ainda no Brasil Imperial, em 1853.
O desenvolvimento da cidade se deu com a estrada de ferro por consequência da produção de fumo e de pequenos engenhos dedicados à produção da rapadura, do melaço, essencial para a fabricação do fumo de rolo e da cachaça. Por meio de documentos oficiais e relatos, vai surgindo do breu do esquecimento uma cidade em seu processo de construção e de fato vai se entendendo por que o alagoinhense é o que é como veio se constituindo, isso é identidade e, sem memória, ela não existe.
Agora se sabe(pode-se saber) mais sobre sua forma de viver e sobre suas escolhas e predileções. Sobre o que se sabia por intuição, agora se atentará de forma mais consciente, pode-se olhar com mais propriedade para erros e acertos coletivos. Entender que esse período ferroviário se deu pela égide do império e ainda com a força do braço escravo. Esse conhecimento será complementado com a edição da segunda parte da pesquisa, que trará fatos relevantes do século XX, falando portanto da modernidade, da vida política e social e da riqueza e inquietação cultural peculiares dessa gente, a influência inglesa e francesa, primeiros administradores da ferrovia.
Um pesquisador citado por Iraci, Littus Silva, está com sua pesquisa praticamente pronta para ser publicada. Esses dois trabalhos darão finalmente a fundamentação histórica para o alagoinhense começar a entender-se e a se ver por inteiro, libertos, mais rápido que outros, do “presente eterno”, maldição dos tempos atuais. Essa iniciativa acadêmica no seu sentido amplo, melhor seria dizer intelectual, no seu verdadeiro significado, chega em boa hora, quando se discute a formulação de um novo Plano de Desenvolvimento Urbano – PDDU para a cidade, defendido no legislativo local pelo vereador Thor de Ninha, dentre outros.
As bases para um debate mais aprofundado, nesse sentido, se fortalecem, considerando que em sua origem, Alagoinhas foi uma cidade industrial. Em 1903, contava com 10 trapiches, fábricas de cigarro e charuto, vinagre, sabão, bebidas, torrefação de café, serraria a vapor, alambiques(13), moinho para milho, pólvora, olarias(15). Existiam três tipogafias, embora só houvesse um fotógrafo. Havia também 13 armazéns, mostrando que era desde então o centro distribuidor de vários produtos para a região.
Dando relevância também a sua pujança cultural, possuidora, portanto, de um povo criativo, que, apostando-se em projetos como a escola em tempo integral e no ensino a distância, direcionado para novas tecnologias como planeja o secretário de Educação, Gustavo Carmo, ganhará um papel de destaque em uma economia que se aprimora e se transforma rapidamente e com liquidez.
Bruno Fagundes, secretário de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente, também está atento para preparar a cidade para receber os futuros empreendimentos em vista da política de captação destes, que está sendo desenvolvida. Ela inclui a realização, já este ano, de um festival ligado à área de bebidas, o Alabeer e uma ênfase crescente na capacitação da mão-de-obra local. A cidade se prepara para ampliação urbana focada no esgotamento sanitário e na macrodrenagem, que vão devolver a pureza de nossas águas. Ruas estão sendo asfaltadas, tornando mais igualitárias as condições de mobilidade, conforto e valorização imobiliária assim, portanto, do próprio desenvolvimento social.
Na área de Saúde, existe um esforço de estruturação com o hospital Materno Infantil e com o recém inaugurado Centro de Cirurgias Eletivas. Na agricultura familiar, já se discute a ampliação das linhas de crédito para possibilitar empreendimentos de maior porte com tecnologia avançada, dessa forma Alagoinhas voltaria também a ser uma grande produtora de laranja e de outras frutas bastante adequadas ao seu solo, facilitando a atração de fábricas de suco.
Quando o presidente da província da Bahia, conta Iraci, argumentou com o imperador, D. Pedro II, que Alagoinhas deveria fazer parte do projeto da ferrovia, ele informou que para transportar a produção da cidade para a grande feira de Dias D’Ávilla, para o porto em Salvador e para o recôncavo, necessitava-se de 1500 mulas, puxadas por 500 homens. Imagine a logística para alimentar essa tropa que era como um verdadeiro exército. Pontos como esse do livro enchem de cores e movimentos nosso imaginário. Na pesquisa de Littus Silva, ele nos dá conta de como as aldeias e as trilhas de caça dos nosso índios foram determinantes para a expansão portuguesa, realizada levianamente pela força, mas também pela cooperação. No seu livro Iraci menciona um relato oficial da presença de uma tribo de indígenas em Aramari, em 1828. Aramari pertenceu muitos anos a Alagoinhas, e nessa época ambas pertenciam a Inhambupe.
Ele defende a tese de que a nossa base cultural é Tupi, povo que ocupou todo litoral brasileiro, mas que foi dizimado, substituído pelos tapuias do grupo jê, que não tinha o fenótipo de indígena tupi, tinham cabelo crespo e pele escura. Isso para Littus gera até hoje a confusão sobre a matriz étnica de Alagoinhas e região. Ele também fala da presença dos franceses em busca do pau brasil, na região. As nossas cidades atuais, como Inhambupe, Rio Real, estão nas proximidades dos grandes rios, por onde eram transportados os toros de pau brasil para serem carregados nos navios aportados no litoral norte, em Mangue Seco, na Barra do Itariri, em Subaúma. Essas cidades passaram a existir tanto para o desenvolvimento da pecuária quanto para impedir a incursão de novos invasores.
Para Littus, houve períodos de conflito e períodos de convivência harmônica, não fosse assim, a cultura Tupi não estaria tão forte tanto na vida do negro, quanto na vida do colono português e sobretudo na do mestiço. O próprio Garcia D’Ávilla casou com uma índia, a exemplo de Caramuru. Ambos valeram-se da tradição Tupi do “cunhadismo”, atender a demanda do cunhado como se fosse sua. Como estratégia, o cunhadismo foi tão importante quanto a escravização. Ele também defende que, nas senzalas, as indígenas tinham a função de “procriar” novos escravos. Ele se sustenta em estudos de DNA realizados em Quilombos que apresentaram até 50% de genes indígenas. Sua pesquisa é tanto intrigante quanto revolucionária.
Interessante perceber que o Brasil nasceu na região de Alagoinhas e que foi aqui a base de expansão portuguesa, chegando até o Piauí e parte de Pernambuco, Maranhão e Ceará. Claro que tudo isso foi resultado do trabalho de gerações da família D’Ávilla. Um historiador cita que em 1609 já se contavam 10 currais pertencentes a eles. Esses currais deram origem as cidades, assim ocorreu o povoamento, inclusive porque sítios para a produção de alimentos foram estruturados, algo semelhante ao regime de servidão medieval da Europa. Interessante entender que a BR 101 foi, por centenas de anos, a grande trilha Tupi e que as cidades existentes hoje foram antigas aldeias e que, como enfatiza Littus, somos todos indígenas/africanos desterrados (ainda sentimos o balanço dos navios negreiros e a aflição da fuga mato adentro) e que vivemos em uma África/Tupi culturalmente falando.
Iraci Gama faz um relato histórico, e um relato da pesquisa histórica no contexto da história do movimento cultural de Alagoinhas, que ganhou força a partir do I Encontro de Cultura da cidade, em 1978. Deste surgiu a Casa da Cultura, final dos anos 1980 e anos 1990, resultando na implantação do Centro de Cultura e na constituição da Fundação Iraci Gama, referência em termos de preservação da memória da cidade, além da Casa do Boi Encantado, mais recentemente, sediada em um antigo matadouro público, com sofisticada estrutura, dotada de peças do telhado provenientes da Inglaterra.
Ela cita toda a luta pela igualdade racial e os esforços atuais da Secretaria de Cultura Esporte e Turismo para fortalecê-la seja pelo censo dos centros de religião de matriz africana, seja pela formação da Coordenação de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. O livro toma por base a pesquisa da congolesa Mwewa Muleka, em sua dissertação para o mestrado em Crítica Cultural, da UNEB local, para falar do quilombo do Catuzinho e do processo de idêntico reconhecimento oficial por que passam outras comunidades. Menciona com destaque ainda a capoeira, que será adotada como disciplina escolar, de acordo com lei de iniciativa da vereadora Juci Cardoso, o samba de roda, a culinária, as baianas e seus tabuleiros com os frutos deliciosos de seus fazeres.
Na segunda parte desse trabalho falará da Euterpe e da Ceciliana, dos clubes de futebol e dominó, das micaretas, dos cinemas, da resistência ao regime militar, registrada pelo nosso combativo jornalismo, assim como já mencionou a presença do Movimento Negro, sob as lideranças de Chicão, Caúca, Antonio Fontes entre outros. Uma Alagoinhas que fazia do sapato ao terno mais fino, nas mãos de alfaiates como Lilio e Benigno, que também era músico de filarmônica e grupos de baile. Falará certamente da influência da produção do petróleo e da atuação dos bancários e demais funcionários públicos na vida intelectual da cidade.
O alagoinhense saberá por fim a história de cada rua por onde passar e onde mora. Talvez em um futuro não tão longe, como idealiza nosso artista plástico Luiz Ramos, retirar-se-ão as fachada modernosas das lojas para deixar visíveis as belas fachadas originais(históricas), como se faz em Paris. Que também no centro da cidade não se transitem automóveis, com o Rio Catu despoluído, algo que será possível graças ao avanço do saneamento da cidade. Conhecer as raízes de uma gente, devolve-lhe a capacidade de sonhar, “o poeta é quem sonha o que vai ser real”.
Com colaboração do jornalista alagoinhense, Paulo Dias.